
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Poema de Manuel Bandeira.
Um cenário que não retrata apenas as décadas passadas, mas atualmente, onde observamos que mesmo a escravidão ter sido abolida há 500 anos atrás, os mais carentes são reféns da escravatura atual que castiga e reduz o ser humano a um bicho, A FOME!
Carolina Maria de Jesus retrata em seu diário e livro quarto de despejo, seu dia a dia na favela do Canindé as margens do rio Tietê em São Paulo. A beira da sociedade ela descreve em seu diário as vivências sendo mãe solo convivendo no meio da criminalidade, enfrentando o racismo e o preconceito. Mesmo com toda a dificuldade de uma moradora da favela, Carolina as encara de frente, sempre lutando para tentar ter uma vida mais digna.
Para ter o mínimo de comida em sua mesa e para seus filhos, Carolina trabalhava como catadora de papel, mas em diversas vezes ela não conseguia absolutamente nada, então ela apelava a alguns de seus vizinhos para fazer trocas, e quando isso não era possível, ela recorria ao lixo. Em um desses episódios em que não havia nem um misero resto de comida, ela se dirigi até o mercado, em que eram despachados restos de comida, entretanto sem um pingo de piedade o dono do mercado joga creolina na carne para impedir que os moradores de rua e alguns moradores da favela a recolham uma crueldade tamanha, que demostra a desumanidade que o ser nem mesmo o lixo pode recorrer.
Este episódio ressalta a brutalidade da realidade vivida na pele daqueles que foram esquecidos no quarto de despejo, nome que Carolina dá ao se referir no cômodo em que ela vivia com seus filhos na favela, e um símbolo que retrata a realidade vivida dos mais pobres.
Seu diário é vivido absolutas verdades, que retratam a década de 60, mas podemos tratá-lo como se fosse escrito na modernidade pois se olharmos em uma realidade não tão distantes de nós mesmos, vemos a realidade nua e crua, em que o estado tenta esconder os menos afortunados e a pobreza atrás de outdoors. Na pandemia diversas pessoas despossuídas recorrem a levar ossos que eram descartados para suas casas, cena retratada diversas vezes por Carolina.
Da década de 60 até os dias de agora, diversos meios de resolução para a fome e a pobreza são discutidos, entretanto nunca chegamos a uma resolução para erradicar esses problemas que acarretam a vida de crianças jovens adultos e idosos que convivem em situação de extrema indigência.
Nesses cenários a literatura e tão importante como o ar que respiramos ela se torna não apenas palavras escritas ao vento, mas uma forma de denúncia contra o estado a sociedade aos governos e os governantes. Esse e o ponto comum da literatura entre Bandeira e Carolina que usam a escrita como uma maneira para dizer as indignações de uma vida inteira de sofrimento e carências, que nem com o trabalho árduo são suprimidas. Denúncia a esse esquecimento que parecem ter com essa população, denúncia de preconceitos e à estruturas racistas que vós negam direitos essenciais à existência. Dessa maneira, em formato de poema, Manuel Bandeira também se faz gigante ao denunciar e escancarar as precariedades que assombram a muitos, convergindo assim com os retratos de Carolina.


